segunda-feira, 20 de maio de 2013

O lar e a água (ou a falta dela)



(Esta é mais uma das minhas "Histórias do Bairro Sion". Se você se interessa pelo assunto, clique ali, ao lado, nesse marcador e tenha acesso aos outros textos do tema).

Abril de 1961 – chegou o dia da mudança. A família ainda é pequena, mas vaidosa de si mesma. Nós adoramos ser aquele trio: nós dois e nossa filhinha, ainda bebê.


Escolhemos o melhor lugar para morar – acesso fácil à família, perto do meu trabalho, bairro novo, casas novas, boa oferta de apartamentos em construção ou prontos. Sem muita dificuldade, olhamos as opções e logo nos encantamos com um prédio muito feioso, mas novinho em folha, um cubo revestido de pastilhas claras, cor indefinida, com doze apartamentos, quatro por andar.   Alugamos um, primeira locação, espaço perfeito para toda a mobília que trouxemos. Com o crescer da família e algumas adaptações criativas, ali ficamos por 7 anos e coubemos muito bem. Enfim, o que quero dizer é que ao escolhermos o bairro Sion, aquela pequena família foi envolvida em um movimento afetivo muito meu: a busca de estreitar mais ainda os laços que me uniam a esse canto da cidade. A partir daí, o bairro já não era apenas o local onde ficavam o colégio onde eu estudara e a escola pública onde trabalhava, mas o lugar escolhido para morar.
Ali, da nossa esquina, a Rua República Argentina ligava-nos à praça Nova Iorque, marco de modernidade da época. A Rua Montevidéu, perpendicular à primeira, ia terminar no córrego do Acaba Mundo. Esse córrego foi depois canalizado e sobre ele surgiu a grande artéria que é hoje, já sufocada pelo trânsito,  a Avenida Uruguai.


Ah, esse córrego! Quanta lembrança! Tinha a água bem limpa, o leito alimentado por várias minas transformadas em bicas com cacos de telhas apoiados em pedras estrategicamente colocadas. Às margens, algumas lavadeiras traziam suas bacias, batiam as roupas nas pedras e a água corria rápida, uma lindeza. Nas manhãs de sol, o canto das mulheres, o brilho da água e o colorido dos panos enchiam o lugar de poesia e beleza. Muitas vezes cheguei ali para fartar-me de paisagem e deixar as crianças molharem os pés na água fria.


Este não é o riacho do Acaba Mundo, mas uma imagem para dar uma idéia do que estou falando.
Naquele tempo, a água canalizada e tratada que servia às casas daquela região vinha da caixa d´água da Rua Carangola, no Santo Antônio. No princípio, tudo bem. Acontece que com o aumento da povoação das áreas mais elevadas do vetor sul, o abastecimento ficou precário. O Sion, ponto mais alto da região, estava em desvantagem. Para que a água atingisse nossas casas, os registros dos bairros mais baixos eram fechados, um pouquinho a cada dia, e isto não durava muito. Tivemos que aprender a conviver com a escassez. Por isto, o córrego veio a ter um papel tão importante.

Ignez Correa - Cuiabá, 1907-1986
Em pouco tempo, não apenas as lavadeiras do Acaba Mundo usavam o riacho: os moradores dos apartamentos da vizinhança levavam também àquelas bicas , suas roupas mais pesadas que exigiam mais água para enxaguar. Nos maiores apertos, também as panelas tinham esse tratamento, um toque rural no bairro moderno.

(Inseri uma imagem ilustrativa porque gostei do quadro, mas as lavadeiras do Acaba Mundo não eram nem tão numerosas nem tão coloridas...)


A falta d´água foi uma constante na minha vida nos anos 60. Vejamos uma rotina dos tempos de seca: Às seis horas da manhã, começava o barulho da água entrando na caixa do prédio. Como sua capacidade era pequena, tínhamos apenas 20 minutos para renovar as reservas dentro de casa, enquanto o maridão corria ao chuveiro, o único da casa a ter o privilégio, porque se dispunha a tomar banho àquela hora. Antes de entrar no box, ele abria a torneira da banheira e a deixava encher-se com água suficiente para suprir todas as funções do banheiro. Enquanto isto, lá na área de serviço, completava-se o tambor ao lado do tanque, para servir ao banheiro da empregada e para lavar as roupinhas das crianças que não eram poucas. (Atenção: naquele tempo não havia fraldas descartáveis). Na cozinha, um latão de água para cozinhar e lavar as louças. Era preciso também reabastecer o filtro de barro. Se o apartamento tivesse as dimensões dos atuais, íamos viver trombando em depósitos de água e baldes. Talvez não houvesse espaço para nós... Aprendemos a tomar banho e lavar cabelos com água de balde, esquentada no fogão, tudo na caneca. Nessa época, eu e as meninas só deveríamos usar cabelos curtos. Mas Lucinha não se conformava, tinha que deixá-los crescer. As colegas do Jardim de Infância usavam - e ela também, como não? - cabelos longos, tranças, rabos de cavalo.
 
Banho no Minas era uma opção, mas ir ao clube com três crianças, de ônibus, só mesmo nas férias e, ainda assim, muito difícil. Não tínhamos carro, a empregada era uma só para todo o serviço, isto é, grande parte era comigo mesma - o tempo era curto para tanta coisa. 

Essas lembranças são bem vivas, mas não sei quanto tempo durou esse sufoco, nem me lembro mais se era assim o ano todo, ou só em períodos de maior falta d´água na cidade em geral. Memória é assim mesmo, falha. Sempre que falo sobre essa primeira etapa de moradora do Sion - anos 60, apartamento alugado, crianças pequenas, vida de pedestre - ocorre-me, como questão fundamental, a lembrança da falta d´água.

Mas, nem essa complicação diária apagou-me o encanto pelas experiências que tivemos com os filhos crescendo, a solidariedade dos vizinhos, a criançada repartindo alegria nas brincadeiras infantis – enfim, por tudo que aprendi ali, na luta e na felicidade.

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