quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Votar faz lembrar e pensar...

Domingo, 31 de outubro, eu votei, como sempre, na minha zona eleitoral que fica no Colégio Santa Dorotéia.

Entrando no terreno do colégio, fui tomada pelas recordações. As magníficas instalações atuais dessa instituição não se parecem nem de longe com o querido educandário das freiras de Nossa Senhora de Sion, onde passei os anos de minha adolescência. Nos anos de 1950, havia apenas o corpo central da edificação, pois o prédio ficou inacabado durante todo o tempo em que lá estudei. Se faltava beleza e a necessária infraestrutura física, nada deixava a desejar em organização, limpeza, acolhimento e excelência na prestação do serviço: uma educação primorosa. Mais tarde, a congregação de Santa Dorotéia adquiriu as instalações e, com o fechamento do Sion de Belo Horizonte, ali instalou o atual colégio. Mas não é sobre isto que vou falar aqui.

Na parte mais baixa e úmida do terreno do colégio, cortada por um fio d´água, havia uma horta e uma plantação de morangos. Mère Rosélia, mesmo sem nos falar de sua origem – que, assim como seu verdadeiro nome de família, os votos religiosos proibiam de alardear – exercia com gosto o trato da plantação, deixando escapar, muito discretamente, o quanto os morangos fizeram parte de sua vida em casa, na fazenda de seus pais, no sul de Minas.

Mas não eram apenas morangos o que ali se cultivava. Boas maneiras, bons sentimentos e solidariedade eram parte do dia a dia. Não apenas entre nós, mas abrangendo as cercanias. Em pouco tempo, à medida que crescia a favela para além de onde agora é a rua Venezuela, começou a preocupação em proporcionar escolaridade às crianças que ali viviam.

Foi então construído, na área da propriedade, um pequeno prédio com duas salas de aula e entrada pela rua Chicago, onde passou a funcionar uma escolinha aos cuidados das freiras, com professoras enviadas pela Prefeitura. Em pouco tempo, a escolinha mostrou-se insuficiente, pois a população aumentava muito, subindo a montanha para o lado do oeste e formando a famosa favela do Morro do Papagaio.

Em 1953, criou-se então o Grupo Escolar Municipal Benjamin Jacob, ocupando uma área do terreno, onde viria a ser a confluência das ruas Venezuela e Assunção. Com salas amplas dispostas em forma de U, cozinha bem equipada, um galpão refeitório que também servia para as festas e um pátio para o recreio, dava frente para a favela, a rua ainda sem urbanização. Nós entrávamos pelo colégio, por um caminho rústico orlado por um bambuzal que contornava a horta e a plantação de morangos.

Eu estava no primeiro ano do Curso de Formação de Professoras e nós ajudamos a decorar e preparar o estabelecimento para sua inauguração. Com certeza outras trabalharam muito, mas só sei de mim e meu grupinho. Sob o comando de Mère Ana Lúcia, dedicamos o máximo capricho na arrumação das salas e da biblioteca, que ficou um primor, com figuras da literatura infantil recortadas em compensado e pintadas por mim, cartazes com desenhos de Zezé Aun e letreiros de Vera Nicolau da Rocha, uma artista do normógrafo (espero que vocês saibam o que é isto). Foi uma combinação promissora, pois eu me tornei professora, Vera bibliotecária e Zezé é artista plástica.

Essa escola municipal, uma das primeiras da capital que até então só contava com escolas públicas estaduais, foi o nosso campo de prática de ensino e onde levamos o choque da convivência direta com pessoas cujo modo de vida era tão diferente do nosso. Lições contundentes sobre pobreza, desnutrição, verminose, abandono, trabalho pesado, lares desestruturados, diferentes formas de organização familiar, moradias improvisadas e precárias. Foi lá que vislumbrei, aos poucos, com inocente perplexidade, a dimensão da importância da educação como recurso para a libertação do ser humano, para a superação das dificuldades da vida e para a conquista da inclusão social. Saí do colégio com um ideal que só poderia ser realizado como professora – e mais: professora de escolas públicas de periferia. Foi o que fiz durante os primeiros quinze anos e que orientou todas as etapas de minha vida profissional.

Na verdade, a recordação dessa parte da minha vida me leva a compreender as escolhas de uma outra menina que, mais de dez anos depois de mim – segundo depoimentos de suas colegas aos jornais - viveu sua adolescência nesse mesmo ambiente, estudando no mesmo colégio, participando das obras sociais que, em sua época, se ampliaram na região. Com a mesma motivação, os mesmos estímulos, fizemos nossas escolhas. Minhas referências e minhas leituras – de livros, de família e do mundo - provavelmente eram diferentes das dela, por isto escolhemos caminhos divergentes, ela na militância política, eu no magistério. E ela, mesmo sem meu voto, tornou-se agora, Presidente do Brasil.

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