terça-feira, 1 de setembro de 2015

São Petersburgo - beleza sob a chuva



27,28 e 29/05/2014

Saímos da tranquilidade de Helsinque para ingressar na Rússia por terra, enfrentando o aspecto pouco amigável dos fiscais de alfândega. Depois, muitos quilômetros de estrada boa cercada de pinheiros, como é comum na região. Nas proximidades de São Petersburgo, começam a aparecer edificações pesadas e grandes, com muitos andares mas sem elevadores, herança da política habitacional soviética. Casa para todos fornecida pelo governo - quem consegue dá graças a Deus, ou melhor, a Stálin. Bem escondidas atrás dos bosques, estão as famosas datchas dos poderosos, casas de campo que, na verdade, são bem simples. Nada que se compare ao luxo do império dos czares. Pode-se criticar a hipocrisia do discurso comunista, mas não dá para comparar os privilégios de sua elite à ostentação e riqueza da Rússia Imperial. O que nos mostra, como lição a fixar, que o ser humano sempre confundiu poder com exploração. Quanto mais tempo dura um regime autoritário, mais cresce o fosso que separa poderosos de seus súditos – ou camaradas! Mas, por favor, não vamos falar de política – para isto me faltam engenho e arte.


Logo que percebemos os primeiros sinais da grande cidade, como que sob o comando de uma deixa do ponto eletrônico, uma chuva fininha e persistente começa a nublar o céu e encharcar o solo. Assim, durante os três dias de nossa visita, São Petersburgo, uma das mais belas cidades do mundo, esconde em bruma e água, sua formosura e a alegria de sua gente.                  


Multidões de turistas lotam ambientes fechados
de museus e igrejas
Todo mundo em passos apressados, mesas vazias nas calçadas - na rua, ficam somente aqueles que estão ali por obrigação. Os turistas, fechados em ônibus, limitam-se ao desafio das filas para visitar igrejas e museus. As águas do rio Neva e dos canais que cortam a cidade não podem refletir o azul do céu nem espelhar com clareza o colorido variado dos grandes palácios construídos em suas margens. Tudo meio acinzentado.
São Petersburgo fica às margens do rio Neva, que nasce no lago Ladoga e lança suas águas, por meio de um delta de cinco braços, no golfo da Finlândia, no mar Báltico. Durante a Primeira Grande Guerra, teve seu nome modificado para Petrogrado, rejeitando a origem germânica do termo burgo. A partir de 1924, com a morte do líder comunista Lenin, passou a ser designada Leningrado. Um plebiscito em 1991 devolveu-lhe o nome original.

Esta cidade foi fundada pelo Czar Pedro, o Grande, em 1703 e tem sido palco de uma história de grandes intrigas, acordos, assassinatos, manobras as mais diversas. Foi capital do Império Russo por mais de dois séculos, com mudanças ao sabor dos caprichos de czares e imperatrizes. Por fim, perdeu esse título para Moscou, a partir de 1917.             
Uma das colunas Rostrais
homenagem aos grandes rios da Rússia
São Petersburgo tem localização privilegiada e faz honra até hoje ao propósito de seu fundador, ou seja, o de ser um porto na ligação da Rússia com a Escandinávia e o restante da Europa, através do Báltico. Em torno do Forte de São Pedro e São Paulo na orla do golfo, nasceu o porto e foi construída a cidade onde se instalaram o soberano e sua corte.
O centro histórico da cidade e o conjunto das edificações ali existentes ganharam o título conferido pela UNESCO de patrimônio mundial da humanidade. É uma cidade cosmopolita em que se encontram inúmeros consulados estrangeiros, sedes de grandes empresas e bancos internacionais.
Localizada bem ao norte da Europa, tem apenas 70 dias solares por ano. E chove... Como chove!

Grande Hotel Europa

Ficamos hospedados no Grande Hotel Europa, um belo prédio e um serviço requintado. Lembra e supera, nos ambientes interiores, a beleza do Grande Hotel de Araxá, dos bons tempos, sem o parque das águas de Dona Beja, claro. Acredito que seja bem mais antigo, século XIX, e tenha servido de modelo para muitos outros de igual categoria.

Bar e sala de estar, interligando restaurantes


Café da manhã
Nos três dias de permanência, visitamos alguns dos prédios mais famosos de São Petersburgo, de acordo com o que o tempo permite. Os outros, podemos ver por fora e registrar em fotos e na memória.
Palácio Stroganoff

Um desses que apenas avistamos através da chuva, chama nossa atenção pelo suave tom de rosa de suas paredes e a fina ornamentação da fachada. Sua história nos transporta, no túnel do tempo, à origem do saboroso estrogonofe dos almoços de domingo. Nesse palácio, viveu o Conde Stroganoff, rico e generoso nobre cujas portas se encontravam sempre abertas, com mesa farta e livre para amigos e conhecidos que aparecessem para uma visita. Certa feita, o número de convivas superou as expectativas e as comidas correram o risco de acabar. O esperto cozinheiro, sem dispor de mais peças inteiras de carne, recolheu as aparas anteriormente rejeitadas, cortou-as em tiras bem finas, cozinhou-as com tempero forte mas saboroso, engrossou o caldo e acrescentou creme de leite fresco para fazer render e suavizar o sabor. Foi um sucesso. A receita foi guardada a sete chaves pela família. Um prestigioso restaurante local alega que, cedendo a sua insistência, os descendentes do conde vieram a ceder-lhe o segredo, mediante gorda recompensa, de onde a iguaria veio a propagar-se, rendendo boa fama ao estabelecimento.
O programa de visitas consta de castelos, palácios e igrejas. Comecemos pelas igrejas.


A visita à catedral ortodoxa de Santo Isaac da Dalmácia é obrigatória. No estilo pesado que caracteriza esse tipo de templo, decoração rebuscada em cores fortes, tem sua beleza nos detalhes, na riqueza do material utilizado e na simbologia de sua mensagem de fé.
Prédio enorme, de cúpula dourada, levou 40 anos para ser construído, sob o comando do arquiteto francês, Auguste de Montferrand, que dedicou quarenta anos de sua vida profissional, inteiramente, a essa obra. Na ala lateral, perto da entrada, está um busto em homenagem a esse arquiteto, esculpido com pedaços dos granitos de várias cores usados na construção. Cabelos, pele do rosto, camisa, gravata e casaco, cada um de uma cor diferente.
Catedral de Santo Isaac

Outro templo interessante é a catedral da Mãe de Deus de Cazã, cujo nome se deve ao fato de ter sido construída para acolher a veneração e abrigar a imagem de Nossa Senhora encontrada na cidade de Cazã, no interior da Rússia.

Não há explicação do motivo pelo qual esse culto tenha mudado de cidade. Prédio majestoso, não parece uma igreja aos nossos olhos. Já funcionou como museu das religiões e memorial militar, mas desde o ano 2000 é a filial do patriarcado ortodoxo de Moscou.

Turistas diante da catedral
Interior da Catedral de Nossa Senhora de Cazã
Imperdível de verdade é a Igreja da Ressurreição do Salvador, chamada pelo povo de Catedral do Sangue Derramado, construída no local em que o czar Alexandre II foi assassinado, em homenagem a seus feitos de soberano. Durante o cerco da cidade na Segunda Guerra Mundial, uma bomba atingiu-lhe a cúpula mais alta, mas não explodiu. Só foi retirada 19 anos após, por ocasião de uma grande obra de restauração. As torres em forma de cebola, características desse estilo russo, dão uma singular beleza ao prédio, qualquer que seja o ângulo de onde a olhamos.

Catedral do Sangue Derramado

Mosaicos famosos

Decoração preciosa
Sua decoração interna compõe uma das maiores coleções de mosaicos da Europa. Os murais sobre temas bíblicos são muito apreciados, considerados obras valiosas. Tão bela essa igreja que até faz a gente esquecer a pouca iluminação, as cores escuras e a multidão de turistas que nela disputa espaço.
Aqui vale uma observação muito relevante para quem está em passeio turístico, com as pernas cansadas de tanto andar: templos ortodoxos não têm bancos para os fiéis! Quem vai à igreja é para rezar, não para descansar no conforto das igrejas católicas romanas. Ora vejam!

Gradil rendado cerca o parque diante da Catedral do
Sangue Derramado
Outra curiosidade: toda igreja ortodoxa é chamada catedral e é governada por um patriarca. Na hierarquia ortodoxa, o patriarca é como um pároco em sua comunidade, mas tem status de bispo, merece uma catedral. Um conjunto de patriarcas forma um patriarcado. Há vários patriarcas numa cidade grande, motivo pelo qual há várias catedrais nessas cidades. Foi o que entendi, salvo engano.



Igreja católica de Santa Catarina


O único templo católico apostólico romano que conhecemos em São Petersburgo é a igreja de Santa Catarina, um prédio amarelo imponente mas sóbrio, perto de nosso hotel.

A riqueza dos templos que visitamos só é superada pela opulência dos palácios e castelos da nobreza imperial. A Rússia é grande e rica, tem ouro à flor da terra e sua atual fartura de petróleo, tão importante no mundo moderno, não era conhecida nem valorizada na época dos czares.
Vejamos agora, nos principais edifícios de valor histórico de São Petersburgo, a expressão mais evidente do poderio econômico da Rússia dos Czares, enfraquecido por suas próprias extravagâncias e finalmente derrotado pela revolução que resultou na ditadura comunista que durou quase todo o século XX. 
Os efeitos da liderança russa na geopolítica da região, ao longo da história, nem sempre tem sido benéficos para os países que giram a seu redor como satélites. Resta saber que força será, um dia, capaz de vencer esse inexorável destino. Vale aqui ressaltar que o governo comunista, ainda que a contragosto e com algumas exceções lamentáveis, permitiu a preservação desse riquíssimo patrimônio, testemunha irrefutável de uma história que não pode ser esquecida, pelo bem e pelo mal que causou ao povo russo e, como lição, à humanidade.
A avenida Nevski corta a cidade e é a principal artéria do trânsito, quase sempre bem congestionado. Mas o cartão postal mais conhecido é a via marginal do rio Neva, formada pela sequência de cais ao longo do rio e margeada por edifícios históricos que abrigam riquezas impossíveis de descrever.







Prédio da antiga fábrica de máquinas Singer, fechada
por causa da guerra com a Alemanha e
atualmente ocupada por lojas e restaurante.
A exemplo do que ocorre com esse conjunto a beira-rio, a cidade preserva a maior parte de sua forma original, mas tem alguns edifícios modernos construídos entre os prédios históricos, em substituição aos que foram destruídos na Segunda Guerra Mundial. É interessante saber que a cidade sobreviveu a mais de trezentas inundações e já sofreu inúmeros incêndios devastadores.


Nas décadas de 1980 e 1990, a Rússia passou por grandes mudanças, com a derrocada da economia do país durante e após o processo de desgaste e consequente queda do regime comunista e da, até então, poderosa União Soviética. Apesar de tudo, a vida cultural continuou vigorosa, nenhum museu foi fechado na cidade.  A UNESCO registra, em São Petersburgo, 36 complexos de arquitetura histórica e cerca de 4.000 monumentos históricos e culturais. A cidade tem, ainda, 221 museus, 2.000 bibliotecas, mais de 80 teatros. A prática do balé ocupa um lugar especial na vida cultural da cidade. Sua escola de balé é uma das melhores no mundo.


Nas margens do rio Neva, o conjunto mais famoso: o Teatro, a ponte sobre o Canal de Inverno, o Grande Hermitage, o Pequeno Hermitage, e o Palácio de Inverno. 

Palácio de Inverno

São Petersburgo é muito conhecida por seus grandes museus, e o mais famoso é o Hermitage, um dos maiores do mundo. As origens do Museu Hermitage remontam a 1754, por iniciativa da imperatriz Elizabeth Petrovna que iniciou a construção do Palácio de Inverno, uma residência em estilo barroco projetada pelo arquiteto Bartolommeo Francesco Rastrelli, com uma beleza destinada a ofuscar a de todos os palácios da Europa. Ao edifício original juntaram-se outros três – o Pequeno Hermitage, o Grande Hermitage e o Teatro Hermitage.
Galerias do Museu Hermitage: tapeçarias
Quando o Pequeno Hermitage ficou pronto, em 1769, Catalina II, a Grande, abrigou sua coleção lá, o que leva este prédio a ser considerado a galeria de arte mais antiga do mundo. Nascia, assim, de fato, o Museu Hermitage. O nome de Hermitage, que sugere um refúgio isolado do mundo para um ermitão, na verdade, pela suntuosidade, dimensão e situação urbana, não faz muito sentido e demandaria mais estudo da matéria para quem quiser entender. Muitas histórias se abrigam em suas paredes, inclusive sobre amores impossíveis ou secretos - vale a pena pesquisar.
Adornos preciosos

Porcelana e ouro


Relógio: gaiola dourada do pavão
















Várias coleções de porcelanas em vitrines
Raffaello

Com a ascensão de Alexandre II, neto de Catalina II, o Hermitage foi declarado museu palaciano e aberto à visitação pública. O Imperador era um amante das artes e logo passou a aumentar a coleção. Após as guerras napoleônicas, a Rússia adquiriu (ou confiscou?), do inimigo derrotado, todo o acervo colecionado pela imperatriz Josefina de França.




Michelangelo











Rembrandt

Caravaggio
Goya

Outras aquisições se sucederam, com telas escolhidas em vários países e na própria Rússia. Durante as grandes guerras do século XX, a população se mobilizou para defender essa riqueza da cobiça dos adversários alemães. Sob o regime comunista, o acervo do museu foi acrescido de obras confiscadas de coleções particulares, mas também reduzido em nome de uma política de descentralização e valorização de museus menores espalhados pelo país - o que não é má ideia, afinal.

Ticiano
Outro passeio interessante é a visita ao Castelo de Verão de Catalina II. O caminho para o Castelo de Verão passa pela terra de Alexandre Puskin e pela estátua do poeta que viveu no século XIX, falecido em duelo em 1837. Essa pequena cidade, por causa da idolatria a seu poeta e a sua história trágica, é considerada a Meca literária da Rússia.


       Castelo de Verão de Catalina, a Grande

O Castelo de Verão é lindíssimo e muito rico, todo decorado com requinte e muito ouro.Impressionante a força dessa mulher, onipresente nas peripécias russas do século XVIII. Sabe-se que a nobreza europeia tinha por hábito viver em luxuosos palácios na cidade durante o inverno e recolher-se a castelos campestres no verão.
Vestuário de época
Na Rússia, não era diferente. O que espanta a nossos padrões atuais é a fartura de preciosidades que dominava em todas as residências dos soberanos e poderosos da época. Atualmente, por mais ostensiva que sejam, as propriedades dos detentores de grandes fortunas não têm nem a suntuosidade, nem as dimensões, nem abrigam a quantidade de habitantes - cortesões ociosos e disponíveis - como nos áureos tempos das grandes monarquias europeias. Tanto ouro, tanta obra de arte, tantos adornos preciosos, porcelanas, pedrarias, verdadeiros ambientes de contos de fadas - quantos braços para produzir tanta riqueza e concentrá-la nas mãos de tão poucos?





Não admira que tenham, com isto, atiçado a tomada de consciência das massas trabalhadoras e plantado, dentro do próprio sistema, o germe das teorias libertadoras e das rebeliões populares.

 Mas o que encanta principalmente, nesse castelo, são seus lagos, pavilhões e vastos espaços artisticamente ajardinados. Se não fosse a chuva, que espetáculo belo de se apreciar!


Pequeno recital de música a capela,
no pavilhão do lago


Fachada de um pavilhão junto ao lago
Escultura da imperatriz na
entrada do pavilhão
Falta agora narrar uma experiência pela qual eu mais ansiava: - um passeio de barco pelo rio Neva e seus canais. Sonhava por antecipação ver a beleza da cidade refletida na água, seus meandros visitados, passando tão pertinho, visão privilegiada. Pois bem: nunca choveu tanto como nessa tarde, tornando penosa a caminhada até o cais,pelas ruas molhadas. Dentro da embarcação, janelas de vidro fechadas para nos proteger do vento frio e dos respingos da chuva. Logo, o vidro passa de respingado a embaçado, dificultando a visão da paisagem externa. O belo passeio fica só na imaginação.

Cidade mais visível no mapa do que pelas janelas do barco


São Petersburgo deixa saudade pelas belezas que vimos e um sentimento de frustração pelo fato de não termos podido sentir o pulsar da cidade, o jeito de ser de sua gente, a vibração da vida na rua e nas praças. A mais bela cidade do leste europeu está nos devendo a visão dessa face imaterial que complemente nossa percepção de sua real e completa beleza. 
Como que por ironia, a manhã de nossa partida para Moscou surge bela e clara, com um pouco de sol e nesgas de azul despontando entre as nuvens. Vai ser um lindo dia para quem fica...